Síndrome de Lennox-Gastaut (SLG) é reconhecida como uma das formas mais graves e desafiadoras de epilepsia na infância. Caracterizada como uma encefalopatia epiléptica e de desenvolvimento, a SLG transcende a mera ocorrência de crises epilépticas frequentes e diversas.
Ela exerce um impacto profundo e, muitas vezes, progressivo no desenvolvimento cognitivo, comportamento e na qualidade de vida da criança, configurando um desafio contínuo para as famílias e equipes médicas. Compreender a complexidade intrínseca desta condição é o passo fundamental para oferecer o suporte mais eficaz e um manejo terapêutico otimizado para as crianças afetadas.
O que é a Síndrome de Lennox-Gastaut (SLG)?
A Síndrome de Lennox-Gastaut é um transtorno cerebral crônico e severo, tipicamente manifestado na primeira infância (geralmente, entre 1 e 8 anos de idade), embora possa ter início mais tardio. É classicamente definida por uma tríade de características clínicas e eletroencefalográficas:
- Múltiplos Tipos de Crise Epiléptica: a criança apresenta uma variedade de tipos de crise, sendo as tônicas (especialmente durante o sono) e atônicas (quedas bruscas) as mais características e frequentes;
- Padrão Eletroencefalográfico (EEG) Característico: o EEG revela um padrão de “onda aguda-onda lenta” generalizada, com frequência de 1.5 Hz a 2.5 Hz, que é proeminente durante o estado de vigília. Durante o sono, podem ser observados surtos de descargas (ritmo rápido) generalizadas, um achado altamente sugestivo da síndrome. Este padrão reflete uma disfunção cerebral difusa;
- Atraso ou Regressão do Desenvolvimento Cognitivo e/ou Problemas de Comportamento: quase todas as crianças com SLG apresentam algum grau de deficiência intelectual, que pode variar de leve a grave. É comum observar um platô no desenvolvimento ou até mesmo uma perda de habilidades previamente adquiridas (regressão), além de uma gama de problemas comportamentais.
A SLG tende a ser uma condição crônica, persistindo até a adolescência e, em muitos casos, na vida adulta. Diferentemente de outras epilepsias, na SLG, a própria atividade epiléptica descontrolada e persistente contribui ativamente para a disfunção cerebral e o declínio cognitivo, daí a designação “encefalopatia epiléptica”.
As causas da SLG são heterogêneas e, em muitos casos, permanecem desconhecidas (idiopáticas ou criptogênicas). No entanto, podem ser identificadas em uma proporção significativa dos pacientes e incluem:
- Malformações Cerebrais: como displasias corticais focais ou generalizadas;
- Lesões Cerebrais Adquiridas: devido aos eventos pré-natais (e.g., infecções congênitas, acidentes vasculares cerebrais intrauterinos), perinatais (e.g., encefalopatia hipóxico-isquêmica, hemorragia intracraniana) ou pós-natais (e.g., meningite, encefalite, traumatismo cranioencefálico grave);
- Distúrbios Metabólicos: incluindo doenças mitocondriais, distúrbios do metabolismo de aminoácidos ou de glicose;
Causas Genéticas: embora a SLG não seja uma doença genética única, mutações em genes específicos (e.g., SCN1A, CDKL5, STXBP1, GABRB3) podem ser identificadas em uma parte dos casos, muitas vezes associadas a outras síndromes epilépticas que podem evoluir para SLG.
Em alguns casos, a SLG pode se desenvolver a partir de outras síndromes epilépticas infantis precoces, como a Síndrome de West, em um processo conhecido como “evolução” ou “transformação sindrômica”.
Múltiplos Tipos de Crise: um Desafio Constante
Um dos aspectos mais definidores e desafiadores da SLG é a presença de múltiplos tipos de crise epiléptica, frequentemente refratários ao tratamento, que podem ocorrer várias vezes ao dia. Essa diversidade e frequência tornam a vida da criança imprevisível e significativamente perigosa. Os tipos de crise mais comuns na SLG incluem:
- Tônica: considerada o tipo mais característico da SLG, ocorre frequentemente durante o sono (mas também em vigília). Caracteriza-se por uma rigidez súbita e sustentada dos músculos axiais e/ou apendiculares. Podem envolver extensão dos membros, desvio dos olhos para cima, dilatação pupilar, taquicardia e, em casos graves, apneia. Se a criança estiver em pé, a perda súbita de tônus postural pode resultar em quedas;
- Atônica (ou Astática / Quedas Bruscas – “Drop Attacks“): caracteriza-se pela perda súbita e breve (geralmente, de 1 – 2 segundos) do tônus muscular, resultando em uma queda imediata da cabeça (“head drop“) ou do corpo. São extremamente perigosas, pois a perda abrupta de postura sem aviso prévio pode causar lesões graves, como fraturas, concussões e lacerações faciais. O uso de capacetes de proteção é frequentemente indispensável;
- de Ausência Atípica: difere das crises de ausência típicas por ter um início e término menos abruptos, duração mais longa (dezenas de segundos a minutos) e uma perda de consciência menos completa. A criança pode apresentar alguma responsividade reduzida, movimentos automáticos (automatismos orais, manuais, balbuciar) e um olhar vago ou fixo;
Tônico-Clônica Generalizada: embora menos frequentes do que outros tipos na SLG, pode ocorrer e é caracterizada por perda súbita de consciência, fase tônica (rigidez generalizada) seguida por fase clônica (movimentos rítmicos de abalo em todo o corpo) e um período pós-ictal de sonolência e confusão; - Estado de Mal Epiléptico: pacientes com SLG são particularmente suscetíveis a estados de mal epiléptico, que podem ser convulsivos (GTCS prolongadas) ou não convulsivos (períodos prolongados de alteração da consciência e atividade epiléptica contínua no EEG). Ambos requerem intervenção médica imediata.
A presença de múltiplos tipos de crise, frequência elevada e dificuldade de controle tornam a SLG uma condição de alto impacto na vida diária da criança e de sua família, exigindo vigilância constante e adaptações significativas no ambiente.
Impacto no Desenvolvimento e Comportamento
Além das crises, a SLG é intrinsecamente definida por seus impactos no desenvolvimento neuropsicomotor infantil. A deficiência intelectual é uma característica quase universal, variando em gravidade e podendo ser progressiva, com a criança perdendo habilidades já adquiridas ou demonstrando uma desaceleração significativa na aquisição de novas habilidades ao longo do tempo.
Os problemas de desenvolvimento podem se manifestar em diversas áreas:
- Dificuldades Cognitivas: afetam amplamente a memória (especialmente de curto prazo), atenção sustentada, velocidade de processamento, funções executivas (planejamento, organização) e habilidades de raciocínio e resolução de problemas, o que impacta diretamente o aprendizado e a adaptação a novas situações;
- Dificuldades Motoras: podem incluir atrasos no desenvolvimento motor grosso e fino, problemas de coordenação, equilíbrio e mobilidade. Embora as quedas por crises atônicas contribuam, a disfunção neurológica subjacente também afeta o controle motor;
- Problemas de Linguagem e Comunicação: as crianças podem apresentar vocabulário limitado, dificuldade em formar frases complexas (linguagem expressiva) e em compreender instruções ou conceitos abstratos (linguagem receptiva), e desafios na comunicação social;
- Problemas de Comportamento: são muito comuns e podem ser debilitantes. Incluem hiperatividade, impulsividade, agressividade (auto ou heteroagressão), irritabilidade, crises de birra intensas, automutilação, características do espectro autista (dificuldades de interação social, comportamentos repetitivos), ansiedade e depressão. Distúrbios do sono (insônia, sono fragmentado) são frequentes e podem agravar tanto as crises quanto os problemas comportamentais e cognitivos.
Esses desafios de desenvolvimento e comportamento exigem uma abordagem terapêutica abrangente e contínua que vá muito além do mero controle das crises, visando a melhoria funcional e qualidade de vida.
Estratégias de Tratamento e Manejo: uma Abordagem Multidisciplinar
O tratamento da SLG é um dos mais complexos na epileptologia pediátrica devido à notória refratariedade da condição aos medicamentos antiepilépticos (MAEs) e heterogeneidade dos tipos de crises. A maioria das crianças necessita de uma politerapia, ou seja, a combinação de múltiplos MAEs.
As principais opções de tratamento incluem:
- Medicamentos Antiepilépticos (MAEs): a escolha dos MAEs é altamente individualizada, baseando-se nos tipos de crises predominantes, no perfil de efeitos colaterais e nas interações medicamentosas. Medicamentos frequentemente utilizados e com alguma evidência de eficácia na SLG incluem Clobazam, Valproato (Ácido Valproico), Lamotrigina, Rufinamida, Topiramato, Felbamato e Canabidiol (CBD) de grau farmacêutico. Encontrar a combinação certa e dose ideal é um processo de tentativa e erro, com monitoramento clínico e laboratorial constante para otimizar a eficácia e minimizar os efeitos adversos;
- Terapias Dietéticas: a dieta cetogênica (clássica, com proporção de gordura para carboidratos e proteínas de 4:1 ou 3:1, ou variações como a Dieta de Atkins Modificada e o Tratamento com Baixo Índice Glicêmico) é uma opção terapêutica importante para a SLG, especialmente para o controle das crises atônicas e tônicas. Seu mecanismo de ação envolve a mudança do metabolismo cerebral para o uso de corpos cetônicos como fonte de energia, o que pode ter efeitos neuroprotetores e anticonvulsivantes. Embora seja rigorosa e exija supervisão médica e nutricional especializada, pode trazer benefícios significativos para algumas crianças refratárias;
- Estimulação do Nervo Vago (ENV – Vagus Nerve Stimulation): para crianças com SLG refratária que não são candidatas à cirurgia ressectiva, a ENV pode ser uma opção adjuvante. Um pequeno gerador de pulsos é implantado sob a pele no tórax e conectado a um eletrodo que envolve o nervo vago no pescoço. O dispositivo envia pulsos elétricos intermitentes ao nervo vago, que, por sua vez, modula a atividade cerebral, podendo reduzir a frequência e/ou gravidade das crises, e, em alguns casos, melhorar o humor e estado de alerta;
- Cirurgia de Epilepsia: a cirurgia curativa (remoção da área do cérebro onde as crises se originam) raramente é uma opção na SLG, pois as crises se originam de forma difusa ou em múltiplas áreas do cérebro. No entanto, a calosotomia (secção do corpo caloso), um procedimento paliativo, pode ser considerada para reduzir a frequência e gravidade das crises de queda (atônicas e tônicas), que são as mais perigosas. Ao seccionar as fibras que conectam os dois hemisférios cerebrais, a calosotomia impede a propagação generalizada das descargas epilépticas, melhorando a segurança e qualidade de vida ao prevenir lesões graves.
Além do controle das crises, um acompanhamento multidisciplinar é absolutamente essencial para abordar os complexos desafios de desenvolvimento e comportamento. Isso envolve uma equipe de especialistas, incluindo:
- Neurologista Pediátrico / Epileptologista: para diagnóstico, manejo e otimização do tratamento das crises;
- Fisioterapeuta: para auxiliar no desenvolvimento motor, equilíbrio, na coordenação e prevenção de deformidades;
- Terapeuta Ocupacional: para melhorar as habilidades de vida diária, a autonomia e integração sensorial;
- Fonoaudiólogo: para intervir nas dificuldades de linguagem, comunicação e deglutição;
- Psicólogo e Neuropsicólogo: para avaliar e intervir nas dificuldades cognitivas, comportamentais e emocionais, oferecendo suporte à criança e à família;
- Educadores Especiais: para adaptar o ambiente escolar e ensino às necessidades específicas da criança, promovendo a inclusão;
- Nutricionista: indispensável se a dieta cetogênica for utilizada para garantir a adequação nutricional e o monitoramento;
- Assistente Social: para auxiliar na navegação dos sistemas de saúde e educação, e no acesso aos recursos e ao apoio;
Geneticista: para investigação de causas genéticas e aconselhamento familiar.
Apoio à Família e Qualidade de Vida
Viver com a Síndrome de Lennox-Gastaut é extremamente exigente e estressante para a família. Pais e cuidadores enfrentam o estresse constante das crises imprevisíveis, a preocupação com o desenvolvimento da criança, sobrecarga de cuidados e necessidade de adaptações significativas no estilo de vida.
É fundamental que as famílias busquem redes de apoio, grupos de pais, associações de pacientes e suporte psicológico para lidar com essa jornada. A prioridade deve ser sempre a melhoria da qualidade de vida da criança e da família, buscando não apenas o controle das crises, mas também o máximo desenvolvimento possível, a promoção de um ambiente seguro e estimulante, e a participação ativa em atividades sociais e educacionais adaptadas. O bem-estar do cuidador é crucial para a sustentabilidade do cuidado a longo prazo.
Conclusão: um Caminho de Resiliência e Esperança
A Síndrome de Lennox-Gastaut é uma condição complexa, crônica e desafiadora, mas os avanços contínuos na Medicina, a pesquisa em novas terapias e a dedicação de equipes multidisciplinares oferecem cada vez mais esperança.
Embora a cura ainda seja um objetivo distante para a maioria dos pacientes, um manejo abrangente e personalizado pode melhorar significativamente o controle das crises, reduzir os riscos de lesões, maximizar o potencial de desenvolvimento individual e, acima de tudo, promover uma melhor qualidade de vida para as crianças e suas famílias. A jornada é desafiadora, mas não precisa ser percorrida sozinha; o apoio e a colaboração entre família e equipe médica são pilares essenciais.
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