Epilepsia Focal Autolimitada da Infância com Descargas Centrotemporais. Receber um diagnóstico de epilepsia do seu filho pode ser assustador e gerar muitas dúvidas, uma vez que a palavra “epilepsia”, muitas vezes, evoca imagens dramáticas e medos injustificados.
No entanto, é crucial saber que existem muitos tipos de epilepsia e alguns são considerados benignos e de excelente prognóstico. A Epilepsia Focal Autolimitada da Infância com Descargas Centrotemporais, anteriormente conhecida como Epilepsia Rolândica Benigna ou Epilepsia Benigna com Pontas Centrotemporais, é um exemplo clássico dessa condição.
Este tipo de epilepsia é um dos mais comuns na infância, afetando crianças saudáveis, e estima-se que represente cerca de 15% a 25% de todas as epilepsias infantis. O mais importante é que, como o próprio nome atual sugere, é autolimitada, o que significa que as crianças a superam espontaneamente na adolescência, sem sequelas a longo prazo.
Este guia visa desmistificar essa condição, oferecendo tranquilidade e informações práticas para pais e cuidadores, ajudando-os a compreender e manejar a situação com confiança.
O que é a Epilepsia Focal Autolimitada da Infância com Descargas Frontotemporais?
Esta condição é a epilepsia sintomática focal mais frequente em crianças neurologicamente típicas, logo, não possuem outras condições neurológicas ou lesões cerebrais subjacentes que causem a epilepsia. Geralmente, manifesta-se entre os 3 e 13 anos de idade, com um pico de incidência por volta dos 6 a 8 anos.
É importante ressaltar que as crianças afetadas por essa epilepsia são, na maioria dos casos, neurologicamente normais antes do início das crises e continuam a se desenvolver tipicamente em todas as áreas.
O termo “autolimitada” significa que as crises tendem a desaparecer por si mesmas à medida que a criança cresce, geralmente, antes ou durante a puberdade (por volta dos 12 a 16 anos de idade). Acredita-se que isso ocorra devido à maturação cerebral, que altera a excitabilidade das áreas cerebrais envolvidas.
A condição é considerada “focal” porque as crises se iniciam em uma área específica do cérebro, no córtex rolândico ou centrotemporal, em que esta região é responsável por funções motoras e sensoriais da face, boca e, em menor grau, do braço. O termo “com descargas centrotemporais” refere-se ao padrão característico de atividade elétrica anormal que é visto no eletroencefalograma (EEG).
Diferentemente de outras epilepsias que podem ter um impacto significativo no desenvolvimento cognitivo ou motor, a Epilepsia Focal Autolimitada da Infância é raramente associada aos déficits permanentes.
Os maiores desafios costumam ser a ansiedade dos pais e a necessidade de gerenciar as crises de forma segura. Embora a causa exata não seja totalmente compreendida, há uma predisposição genética em alguns casos, com histórico familiar de epilepsia ou descargas epileptiformes no EEG.
Reconhecendo as Crises: Sinais Típicos para os Pais
As crises na Epilepsia Focal Autolimitada são bastante características e, uma vez reconhecidas, ajudam muito no diagnóstico. O mais notável é que a grande maioria delas (cerca de 70% – 80%) ocorre durante o sono (seja no início, durante o sono profundo ou ao despertar) ou logo ao acordar.
Raramente acontecem durante o dia, quando a criança está plenamente consciente e envolvida em suas atividades, porque a atividade cerebral durante o sono pode tornar o cérebro mais propenso a essas descargas.
Os sintomas costumam ser focais e afetar uma parte específica do corpo, geralmente um lado do rosto ou da boca, devido ao envolvimento do córtex rolândico:
- Sintomas Motores: podem começar com abalos ou contrações rítmicas e repetitivas em um lado da face (boca, língua, bochecha), que podem se estender para o braço ou a perna do mesmo lado. É comum haver desvio da boca ou do olho para um lado e a criança tende a apresentar movimentos de mastigação ou deglutição;
- Sintomas Sensoriais: formigamento, dormência ou sensação estranha (como “eletricidade”, “borbulhamento” ou “ardência”) no lado afetado da face, língua ou garganta podem ser os primeiros sinais. Com isso, tende a tentar coçar a área ou expressar desconforto;
- Dificuldade de Fala (Anartria ou Afasia): a criança pode ser incapaz de falar, emitir sons incompreensíveis, grunhidos ou borbulhos durante a crise, mesmo que sua consciência esteja preservada. Isso é muito característico e pode ser assustador para os pais e a si, que pode estar consciente do que está acontecendo, mas incapaz de comunicar-se verbalmente;
- Sialorreia (Salivação Excessiva): devido ao envolvimento da musculatura orofacial e dificuldade de deglutição durante a crise, é comum a criança salivar muito ou babar, o que não significa necessariamente que há um aumento na produção de saliva, mas, sim, uma incapacidade de engolir;
- Consciência: geralmente, é preservada ou apenas ligeiramente alterada no início da crise, então, ela pode estar ciente do que está acontecendo e lembrar do episódio. No entanto, se a crise se espalhar para outras áreas do cérebro, pode perder a consciência;
- Generalização: em alguns casos, a crise focal pode se espalhar e evoluir para uma crise tônico-clônica generalizada, que é o tipo mais conhecido (com perda de consciência, rigidez e abalos em todo o corpo). Isso pode acontecer mais frequentemente se a crise ocorrer durante o sono, pois o cérebro está mais suscetível à propagação da atividade epiléptica;
- Duração: as crises são, geralmente, curtas, durando de alguns segundos a poucos minutos (tipicamente menos de 2 – 3 minutos);
- Pós-Crise (Pós-Ictal): após a crise, a criança pode sentir-se sonolenta, confusa ou ter uma fraqueza temporária no lado do corpo afetado pela crise (conhecida como Todd’s paralysis), que, geralmente, se resolve em minutos ou horas.
É crucial entender que mesmo que seu filho tenha uma crise tônico-clônica generalizada, a condição ainda é considerada benigna se o EEG mostrar as características típicas das descargas centrotemporais e a criança for neurologicamente normal.
Processo de Diagnóstico: Confirmando a Suspeita
O diagnóstico da Epilepsia Focal Autolimitada da Infância é feito por um neurologista pediátrico e baseia-se, principalmente, na descrição detalhada das crises pela família e nos achados do eletroencefalograma (EEG).
- História Clínica Detalhada: o neurologista coletará informações minuciosas sobre como as crises acontecem: quando ocorrem (principalmente, durante o sono?), quais partes do corpo são afetadas, se a criança consegue falar ou se comunicar durante a crise, e quanto tempo duram. Detalhes sobre o desenvolvimento dela e histórico familiar também são importantes;
- Dica para os Pais: se possível e seguro, tente filmar uma crise com o celular. Mesmo um vídeo curto pode ser extremamente útil para o médico confirmar o tipo de crise e fazer o diagnóstico preciso.
- Exame Neurológico: os exames físico e neurológico da criança são tipicamente normais, logo, isso é um achado crucial, pois a ausência de déficits neurológicos (como fraqueza persistente, problemas de coordenação ou atraso no desenvolvimento) reforça o diagnóstico benigno e a ausência de uma lesão cerebral subjacente;
- Eletroencefalograma (EEG): este é o exame-chave para o diagnóstico, porque registrará a atividade elétrica do cérebro por meio de eletrodos colocados no couro cabeludo. Na Epilepsia Focal Autolimitada, o EEG revela um padrão característico de “pontas” ou “descargas epileptiformes” de alta voltagem, bifásicas ou trifásicas, localizadas nas regiões centrotemporais do cérebro. Essas descargas são mais evidentes e frequentes durante o sono, por isso, um EEG realizado com a criança dormindo (seja um sono natural ou induzido por sedação leve) é fundamental para o diagnóstico. É importante notar que essas descargas podem ser muito frequentes mesmo entre as crises (interictais), mas isso não significa que ela está tendo crises constantemente; é apenas um marcador da excitabilidade cerebral;
- Ressonância Magnética (RM) do Cérebro: geralmente, uma RM do cérebro é solicitada para descartar outras causas de epilepsia focal, como malformações cerebrais, tumores, cicatrizes de lesões anteriores ou outras anomalias estruturais. Na Epilepsia Focal Autolimitada, a RM é invariavelmente normal e sua normalidade é um critério importante que reforça o diagnóstico benigno e exclui a necessidade de cirurgia ou investigações mais invasivas.
Tratamento e Manejo: Quando e Como
Um dos aspectos mais reconfortantes da Epilepsia Focal Autolimitada é que nem sempre o tratamento com medicamentos é necessário. Muitos neurologistas optam por não iniciar a medicação se as crises são:
- Infrequentes: ocorrendo apenas algumas vezes ao ano;
- Exclusivamente Noturnas: sem impactar as atividades diárias da criança ou o sono;
- De Curta Duração: não prolongadas;
- Não Associadas às Lesões ou aos Traumas: sem risco de queda ou outros acidentes durante a crise;
- Sem Impacto na Qualidade de Vida: se a ansiedade dos pais e da criança for manejável sem medicação.
A decisão de iniciar a medicação deve ser discutida cuidadosamente com o neurologista e a família, levando em conta o impacto das crises na vida da criança, o nível de ansiedade dos pais e a frequência e gravidade das crises.
Se as crises forem muito frequentes (semanais ou diárias), ocorrerem durante o dia, afetando a escola ou as atividades, causarem grande preocupação ou impactarem o sono e bem-estar dela, o tratamento pode ser recomendado para melhorar a qualidade de vida.
Os medicamentos antiepilépticos mais comumente usados para essa condição incluem:
- Oxcarbazepina;
- Levetiracetam;
- Carbamazepina;
- Sulfato de Valproato (Ácido Valproico) – embora eficaz, é frequentemente uma segunda linha devido aos potenciais efeitos colaterais.
O objetivo do tratamento é controlar as crises com a menor dose possível de medicação (geralmente, em monoterapia, ou seja, com um único medicamento) e o mínimo de efeitos colaterais.
O neurologista monitorará a resposta da criança ao medicamento e ajustará a dose conforme necessário. Mas é importante estar ciente de que todos os medicamentos podem ter efeitos colaterais e estes devem ser discutidos com o médico.
Uma vez que as crises estejam controladas por um período de tempo (geralmente, de 1 – 2 anos) e a criança se aproxime da idade em que a condição costuma se resolver (adolescência), o médico pode considerar a retirada gradual da medicação.
A maioria das crianças conseguirá parar de tomar os medicamentos sem que as crises retornem, confirmando a natureza autolimitada da condição. No entanto, a retirada deve ser feita sempre sob supervisão médica, diminuindo a dose lentamente para evitar a recorrência de crises.
Vivendo com o Diagnóstico: Orientação para os Pais
Apesar do prognóstico excelente, viver com o diagnóstico pode ser desafiador emocionalmente para a criança e família. Aqui estão algumas dicas práticas para ajudar a manejar a situação:
- Eduque-se e Informe-se: quanto mais você souber sobre a condição, mais confiante se sentirá. Busque informações em fontes confiáveis (sociedades de Neurologia e fundações de epilepsia) e compartilhe informações com familiares próximos, professores e cuidadores, explicando a natureza benigna da epilepsia e o que fazer em caso de crise (geralmente, apenas proteger a criança e garantir que esteja segura até a crise passar, sem tentar imobilizá-la ou colocar algo em sua boca);
- Mantenha um Registro Detalhado: anote a data, hora, duração, as características específicas de cada crise (o que a criança estava fazendo, quais partes do corpo foram afetadas, se houve perda de consciência etc.) e quaisquer fatores desencadeantes percebidos. Isso será um recurso valioso para o neurologista monitorar a condição e ajustar o tratamento, se necessário. Existem aplicativos e diários específicos para isso;
- Grave as Crises (se possível): filmar uma crise com o celular (com segurança e priorizando o bem-estar da criança) pode ser extremamente útil para o médico confirmar o tipo de crise, fazer o diagnóstico ou ajustar o tratamento;
- Foco na Normalidade e Qualidade de Vida: incentive seu filho a ter uma vida o mais normal possível. Restrições desnecessárias podem causar mais dano emocional e social do que a própria epilepsia. Sendo assim, atividades físicas, esportes e vida social são importantes para o desenvolvimento infantil. Converse com o médico sobre quaisquer precauções específicas para esportes de risco (como natação e escalada) – geralmente, com supervisão adequada, a maioria das atividades são seguras;
- Rotina de Sono: mantenha uma rotina de sono regular e adequada para cada idade, uma vez que a privação de sono pode ser um fator desencadeante para crises em algumas crianças com epilepsia;
- Apoio Psicológico: se a ansiedade ou o estresse for muito grande, tanto para a criança (que pode sentir-se diferente ou com medo) quanto para os pais, buscar apoio psicológico ou participar de grupos de apoio pode ser muito benéfico;
- Confie no Prognóstico: lembre-se repetidamente de que esta é uma epilepsia autolimitada e de excelente prognóstico. A grande maioria das crianças se tornará livre de crises e não precisará mais de medicação na adolescência, vivendo uma vida plena e sem restrições.
Conclusão: uma Jornada com Final Feliz
A Epilepsia Focal Autolimitada da Infância com Descargas Centrotemporais, ou Epilepsia Rolândica, é uma condição que, apesar de assustar pelo nome e pelos sintomas, carrega um prognóstico muito favorável.
Com o diagnóstico correto e um manejo adequado, que pode ou não incluir medicação, as crianças afetadas podem esperar uma resolução completa de suas crises e um desenvolvimento neurológico e cognitivo normal.
As chaves são a informação, observação atenta e uma parceria de confiança com a equipe médica para garantir que seu filho tenha a melhor qualidade de vida possível enquanto atravessa essa fase. E a compreensão de que esta é uma condição benigna e transitória é fundamental para a tranquilidade da família.
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