Crises de Ausência na Infância. No universo das epilepsias infantis, existem condições que se manifestam de formas muito variadas. Enquanto algumas causam crises dramáticas e facilmente reconhecíveis, outras são mais sutis, tornando a identificação um verdadeiro desafio para pais, cuidadores e até mesmo profissionais de saúde.
A Epilepsia de Ausência na Infância, caracterizada pelas chamadas Crises de Ausência (anteriormente conhecidas como “pequeno mal”), é um exemplo perfeito dessa sutileza e da necessidade de um olhar atento.
Frequentemente confundidas com desatenção, devaneios, sonolência excessiva ou até mesmo desinteresse por parte da criança, as crises de ausência podem passar despercebidas por semanas ou meses. No entanto, a identificação precoce é crucial.
Compreender o que são essas crises, como manifestam-se e qual é o impacto no desenvolvimento da criança pode fazer toda a diferença no diagnóstico e início de um tratamento adequado, que, geralmente, leva a um excelente prognóstico e permite que ela tenha uma vida plena e sem interrupções no aprendizado.
O que são Crises de Ausência?
As crises de ausência são um tipo de crise epiléptica generalizada, o que significa que envolvem ambos os hemisférios cerebrais desde o seu início, resultando em uma interrupção abrupta e breve da consciência.
Diferentemente das crises tônico-clônicas (as “convulsões” mais conhecidas), as crises de ausência não causam quedas, abalos intensos ou perda prolongada de consciência. Em vez disso, caracterizam-se por uma “desconexão” momentânea do ambiente.
Durante uma crise de ausência, a criança parece “desligar” ou “se desconectar” do ambiente, é como se estivesse “no mundo da lua” por alguns instantes, com a mente “em branco”.
O mais notável é a sua brevidade: essas crises duram apenas alguns segundos, geralmente entre 5 e 15 segundos, e raramente mais de 30 segundos. Elas começam e terminam de forma abrupta, sem aviso prévio (aura) e sem período de confusão pós-crise (pós-ictal). A criança simplesmente retoma a atividade que estava fazendo como se nada tivesse acontecido, sem se lembrar do episódio. Essa amnésia para o evento é um marco distintivo.
Como as Crises de Ausência se Manifestam (Sinais e Sintomas)
A sutileza é a marca registrada das crises de ausência, o que as torna tão difíceis de identificar. Os sinais podem ser muito discretos e, por vezes, confundidos com comportamentos normais da infância:
- Olhar Fixo ou Vago: a criança para o que está fazendo, fica com o olhar fixo no vazio ou com os olhos virados para cima. O olhar pode parecer inexpressivo, “perdido” ou “vidrado”, sem foco;
- Ausência de Resposta: durante a crise, a criança não responde quando chamada, não reage aos estímulos externos (como um toque suave no ombro, barulho alto ou uma pergunta direta) e não presta atenção ao que está acontecendo ao redor. É uma interrupção total da interação;
- Movimentos Sutis (Automatismos): embora a ausência seja o sintoma principal, algumas crises podem ser acompanhadas de movimentos muito discretos e repetitivos, chamados automatismos, que são atividades motoras involuntárias que ocorrem durante o período de consciência alterada. Os mais comuns incluem:
- Movimentos de piscar rápido dos olhos (como um “fluttering” das pálpebras, semelhante a um piscar excessivo e rápido);
- Lamber os lábios, mastigar, engolir em seco ou movimentos de sucção;
- Movimentos leves e repetitivos nas mãos (como esfregar os dedos, mexer em roupas, fumbling) ou nos braços (como pequenos movimentos de flexão e extensão);
- Palidez ou rubor facial, e, ocasionalmente, dilatação das pupilas.
- Frequência: uma das características mais importantes é a alta frequência. Uma criança com crises de ausência pode ter dezenas ou até centenas de crises por dia. Por serem tão breves, os pais podem perceber apenas algumas, enquanto muitas outras passam despercebidas, especialmente em ambientes escolares ou durante atividades de rotina;
- Momento de Ocorrência e Gatilhos: as crises são mais propensas a ocorrer quando a criança está relaxada, em repouso, ou em situações de pouca estimulação (assistindo TV, em um momento de tédio, durante uma aula monótona). A hiperventilação (respirar fundo e rápido por 3 a 5 minutos) é um gatilho muito potente para desencadeá-las, o que é frequentemente usado durante o exame de eletroencefalograma para facilitar o registro das crises e confirmar o diagnóstico. Privação de sono, fadiga, estresse emocional e, menos comumente, luzes piscantes (fotossensibilidade) também podem aumentar a frequência.
Síndrome de Epilepsia de Ausência na Infância (EAI)
A Epilepsia de Ausência na Infância é uma síndrome epiléptica genética, o que significa que há uma predisposição genética, embora, geralmente, não seja uma herança de gene único, mas, sim, poligênica. É caracterizada, primariamente, pela ocorrência de crises de ausência típicas.
Geralmente, a CAE começa em crianças com desenvolvimento neurológico normal, entre os 4 e 10 anos de idade, com um pico de incidência entre os 5 e 7 anos. É mais comum em meninas.
O padrão clássico no eletroencefalograma (EEG) durante uma crise de ausência é uma atividade de “espícula-onda generalizada a 3 Hz”, que se inicia e termina abruptamente. Este achado é patognomônico, ou seja, é um sinal distintivo e quase exclusivo dessa condição, sendo crucial para o diagnóstico diferencial.
A boa notícia é que o prognóstico da EAI é, geralmente, muito favorável. A maioria das crianças responde bem ao tratamento com medicamentos antiepilépticos e muitas superam a condição na adolescência, vivendo uma vida normal sem crises. A remissão espontânea é comum.
No entanto, uma pequena porcentagem (cerca de 10% – 15%) pode desenvolver outros tipos de crise, como crises tônico-clônicas generalizadas ou ter um curso mais prolongado da doença, por vezes, evoluindo para síndromes como a Epilepsia de Ausência ou Epilepsia Mioclônica Juvenil. Por isso, o acompanhamento a longo prazo é importante.
Como Identificar as Crises – Guia para Pais e Educadores
Devido à sua natureza sutil, as crises de ausência são frequentemente mal-interpretadas. Aqui estão dicas cruciais para ajudar na identificação:
- Atenção aos “Momentos de Desconexão”: se seu filho parece “sonhar acordado”, “estar no mundo da lua” ou “desligar” subitamente por alguns segundos e depois volta ao normal sem perceber a interrupção, fique atento. Observe se ele para de falar no meio de uma frase ou comer no meio de uma garfada;
- Diferencie de Desatenção Normal: a principal diferença é a completa falta de resposta. Uma criança desatenta pode demorar para responder ou reagir a um estímulo, mas uma em crise de ausência não reage de forma alguma e o retorno à normalidade é instantâneo e completo. Você pode tentar um “teste” simples: durante o episódio, chame a criança pelo nome em voz alta, balance suavemente o ombro dela ou deixe cair um objeto barulhento próximo. Se não houver reação, a suspeita aumenta;
- Impacto Escolar: preste atenção ao desempenho escolar. As crises de ausência frequentes podem ter um impacto significativo no aprendizado e comportamento, levando a:
- “Gaps” no Aprendizado: a criança perde partes cruciais da explicação do professor, do conteúdo da aula ou das instruções, especialmente em tarefas sequenciais. Isso pode resultar em lacunas no conhecimento acumulado;
- Dificuldade em Seguir Instruções Complexas: principalmente, aquelas com múltiplos passos, pois a interrupção da consciência impede a retenção da informação;
- Queda no Rendimento: notas baixas, especialmente, em matérias que exigem atenção contínua e processamento rápido de informações;
- Comentários de Professores: “seu filho parece desatento”, “vive no mundo da lua”, “não segue as aulas”, “parece sonolento” ou “parece ter dificuldade de concentração”. Em alguns casos, pode ser erroneamente diagnosticado com Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) ou dificuldades de aprendizado.
- O “Teste do Vídeo”: se você suspeitar de crises de ausência, tente filmar seu filho durante um desses episódios com um celular. Um vídeo curto (mesmo de 10 – 15 segundos) pode fornecer ao neurologista informações cruciais para confirmar o diagnóstico e diferenciar de outras condições. Tente capturar a face e o corpo, e, se possível, tente interagir (chamar o nome, tocar) para mostrar a falta de resposta, validando a “desconexão”;
- Pergunte à Criança (se for mais velha): algumas crianças mais velhas podem descrever a sensação como um “vazio”, “branco”, “parada no tempo” ou “um buraco na memória”. No entanto, a maioria delas que são pequenas não se lembra do episódio ou não consegue articulá-lo.
Diagnóstico e Tratamento
O diagnóstico da Epilepsia de Ausência na Infância baseia-se em uma história clínica detalhada, coletada dos pais e, idealmente, dos educadores, que podem observar as crises em diferentes contextos. O pilar do diagnóstico é o eletroencefalograma (EEG).
- EEG: um EEG de rotina pode ser suficiente, mas um EEG com privação de sono (em que a criança dorme menos na noite anterior) e a manobra de hiperventilação (respiração profunda e rápida por alguns minutos) são frequentemente realizados para aumentar a chance de registrar as descargas ponta-onda generalizadas de 3 Hz, que são a assinatura elétrica da crise de ausência;
- Neuroimagem: uma ressonância magnética (RM) cerebral é frequentemente solicitada para descartar outras causas de crises ou alterações de comportamento, e confirmar que o cérebro não possui anomalias estruturais subjacentes, o que é típico na CAE.
O tratamento, geralmente, envolve medicamentos antiepilépticos (MAEs). Os mais eficazes e comumente prescritos para as crises de ausência são:
- Etossuximida: é o medicamento de primeira linha, com excelente eficácia e bom perfil de segurança para crises de ausência puras. Sua ação principal é no bloqueio dos canais de cálcio tipo T (T-type calcium channels) no tálamo, que estão envolvidos na geração dessas crises;
- Valproato de Sódio: também muito eficaz, especialmente se houver outros tipos de crise concomitantes (como tônico-clônicas generalizadas) ou se a etossuximida não for eficaz ou bem tolerada. Possui um espectro de ação mais amplo, mas pode ter mais efeitos colaterais (ex: ganho de peso, disfunção hepática, teratogenicidade em mulheres em idade fértil), o que o torna uma segunda opção para crises de ausência isoladas;
- Lamotrigina: outra opção, por vezes, utilizada como terapia adjuvante ou se as anteriores não forem adequadas. É menos eficaz do que a etossuximida e o valproato para crises de ausência puras, mas pode ser útil em casos específicos ou para tipos atípicos de ausência.
O objetivo do tratamento é eliminar as crises completamente, permitindo que a criança tenha um desenvolvimento normal e pleno, sem interrupções no aprendizado e na socialização.
A adesão rigorosa ao tratamento e o acompanhamento regular com o neurologista pediátrico são fundamentais. Na maioria dos casos, após um período de controle das crises (geralmente, 1 – 2 anos sem crises e com EEG normalizado), o médico pode considerar a retirada gradual da medicação, sempre sob sua supervisão.
Conclusão: Identificação Precoce para um Futuro Melhor
Embora as crises de ausência possam ser difíceis de detectar devido à sua natureza sutil e breve, a conscientização sobre seus sinais e o impacto que podem ter no desenvolvimento infantil são a chave para um diagnóstico precoce.
A Epilepsia de Ausência na Infância tem um prognóstico, geralmente, muito favorável quando tratada adequadamente. Ao identificar e intervir precocemente, pais e educadores podem garantir que a criança receba o suporte necessário para controlar as crises, evitar interrupções no aprendizado e continuar a prosperar em seu desenvolvimento cognitivo e social, permitindo que desfrute de uma infância plena e um futuro promissor.
Se você suspeitar que seu filho está tendo esses “apagões” ou “momentos de desconexão”, não hesite em procurar um neurologista pediátrico para uma avaliação completa.
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